De
Platão a Descartes e de Descartes aos pós-modernos sempre se pensou e pensará
sobre a idiossincrasia idílica do real. Submersos na ilusão cotidiana, nossos
olhos nos enganam, pintam fantasias para a mente distraída.
O que é real afinal? Podes, acaso,
ter certeza que estás acordado e não em um sonho? “Penso logo existo” ou penso logo:
existo! (?)
Alguns, da Física, já afirmaram a
ilusão coletiva em que vivemos. Tudo não passa de um aglomerado de energia em movimento
formando aquilo que queremos crer, afirmam eles. Será a mente um esconderijo da
realidade?
Como ter certeza que estamos aqui,
que o quê vemos é exatamente o quê está ali? Será a sua imagem refletida pelo
espelho a mesma que vejo em você? Ou será que o espelho mente, mostrando apenas
aquilo que você quer ou consegue ver?
Como escapar dessa roda gigante,
desse poço sem fim, dessa bizarra tentação do pensar...?
Ariane também refletia sobre isso, e
debatia o assunto sempre que tinha a chance. Em geral, as pessoas fugiam dela,
mas algumas sempre restavam para ouvir seus argumentos. Talvez as que se
consideravam mais loucas que ela e, portanto, não acreditando correr risco
algum. Ela sempre foi aficionada por literatura e ciência. Devorava tudo o que via
pela frente. Seus gêneros favoritos eram todos aqueles que, de alguma forma,
lhe acrescentassem conhecimento. Até o dicionário já leu algumas vezes.
Observe, eu digo leu, e não consultou.
Agora estava com 23 anos. Uma moça
bonita, de belos cabelos ondulados, altura mediana, olhos adocicados, sorriso
claro e um temperamento de Rapunzel. Apesar dos admiráveis dotes físicos que a
acompanhavam Ariane nunca havia namorado. Jamais se interessara por rapaz
algum, até este dia.
Quando deixava a biblioteca, chocou-se
violentamente com ele, Marcos, e ao apanharem juntos os livros, que rolaram
escada abaixo, seus olhares se encontraram e o destino de Ariane mudou para
sempre.
– Ai... Ele é tão bonito! Você
precisa conhecê-lo, Cláudia.
– Ele te convidou para sair?
– Sim. Me ligou hoje.
– E como conseguiu seu número?
– Não sei! Talvez eu tenha deixado
cair de algum livro quando eles rolaram pela escada. Ah!... Mas isso pouco
importa! O que interessa é que estou apaixonada, e isso não acontece com
freqüência.
– Não acontece mesmo! Há quanto
tempo nos conhecemos? Dois três anos?
– É, acho que é isso.
– E nesse tempo todo eu nunca vi
você se interessar por ninguém. É realmente impressionante, quase um milagre.
– É que eu estava muito ocupada. Mas
agora cansei dessa vidinha monótona. Quero um pouco de aventura. O destino
finalmente abriu suas portas para mim.
– Já falei que estes livros vão
acabar te enlouquecendo. Faz bem em sair um pouco, ter vida social, pra variar.
Você vive enfurnada no quarto ou na biblioteca, estuda e lê o dia inteiro. Nem
têm amigas.
– Tenho você!
– É, mas, fora eu não, existe mais
ninguém.
Ariane morava sozinha em uma
quitinete alugada no centro da cidade. Quando começou a faculdade duas garotas
dividiam com ela o quarto e sala, mas logo se deram conta que não daria certo e
cada uma seguiu seu caminho. Cláudia era a única amiga com que Ariane podia
contar. As duas se conheceram na biblioteca, num incidente parecido com o
ocorrido com Marcos, só que dessa vez com uma dúzia de canetas se espalhando
pelo chão da biblioteca.
– Psiiiiii....!!!!!! – fez a moça
que zelava pelo silêncio.
– Acho que hoje estamos conversando
demais Ariane.
– É verdade – disse rindo – hoje eu
estou muito ansiosa. Mal posso esperar a noite chegar.
– Agora vamos estudar. As pessoas já
estão nos olhando com cara feia.
– Isso sempre acontece comigo. Às
vezes acho que sou a única pessoa deste mundo que não pode conversar. – falou,
rancorosa, aumentando a voz e voltando a se debruçar, em sinal de protesto,
sobre os livros.
A noite custou a chegar, mas, enfim,
chegou. Ariane não demorou nada para se arrumar, afinal, era tão raro uma saída
à noite que ela já não tinha praticamente nenhuma roupa para a ocasião. Marcos,
as nove em ponto, interfonou para seu apartamento.
– Nossa, que pontual! – disse,
olhando aflita para o relógio.
Encontraram-se à porta do prédio,
cumprimentando-se com um singelo beijo no rosto, acompanhado de perto pelo
porteiro.
– Esses porteiros... são tão
indiscretos. – comentou Ariane – vamos sair daqui! Onde está o seu carro?
– Eu vim a pé.
– Ah....!
E seguiram, caminhando, até um
famoso restaurante de frutos do mar localizado a duas quadras dali.
– Mesa para dois, por favor! – disse
o rapaz ao garçom.
– Sim, Senhorita? – respondeu o garçom,
sem sair do lugar.
– Mesa para dois – repetiu Marcos.
O garçom continuou imóvel, olhando
de forma estranha para Ariane. “Será que ele me conhece de algum lugar?”
pensava ela, já um pouco constrangida com a situação.
– O senhor pode por favor nos
providenciar uma mesa – disse ela, por fim.
– Com todo prazer – respondeu o
garçom, se retirando de imediato.
– Não se fazem mais garçons como
antigamente – retrucou Marcos, mal humorado.
Ariane riu e lhe deu um beijo no
rosto. Marcos olhou admirado para a menina, que corou instantaneamente, também
admirada com seu gesto impensado. “Ai, que vergonha, que vergooonhaaa!!! Por
que eu fiz isso, meu Deus?” Pensava ela, enquanto sentia o rosto queimando.
Não demorou e o garçom voltou para
conduzi-los ao lugar á mesa.
– Faça o favor de me acompanhar,
senhorita!
O jantar seguiu delicioso, apesar de
um pequeno incidente com os pratos. Marcos era de inteligência e humor
fascinantes. Tudo parecia um sonho, um conto de fadas, como nos livros. E tudo
seguiria assim, perfeito, se não fosse por um pequeno detalhe: Quando já haviam
terminado o jantar e saboreavam juntos a garrafa de vinho, um homem, trajando
preto, após umas palavras ao garçom, se aproximou da mesa do jovem casal.
– Senhor Marcos Villamport?
– Sim!
– Por favor, se levante e venha
comigo. Vamos evitar uma cena aqui!
– O que está acontecendo? – Ariane
perguntou aflita.
– Não se meta mocinha, esse é um
assunto do qual é melhor ficar fora.
– Ele tem razão Ariane. Fique aqui,
vai ser melhor para você.
Marcos se levantou, entregou um
dinheiro para o garçom e saiu com o homem. Todos no restaurante olhavam
indagadores para Ariane, que estava extremante envergonhada. Ela levantou, e
sem olhar para os lados, saiu do restaurante.
Começou a caminhar de volta para
casa e percebeu, em meio ao turbilhão de seus pensamentos, que estava sendo
seguida. “O que vou fazer agora?” se perguntava enquanto apertava o passo na
tentativa de despistar os homens. Os dois se aproximavam e, por se julgar bem
próxima de casa, Ariane começou a correr. A noite se transformara em um
terrível pesadelo. Ariane corria, os homens se aproximavam, e quanto mais
corria, como num sonho, mais distante parecia ficar. “Isso não vai acabar bem.
Nos romances nunca acaba!” pensava ela, enquanto corria.
Agora, de salto quebrado e pé
torcido, a menina se recostava no muro à virada de uma esquina, chorando, a
espera de seus perseguidores, que se aproximavam, ou de um milagre, que a
salvasse.
E foi que o inesperado aconteceu.
Antes que os homens a alcançassem, do outro lado da rua, Cláudia vinha
passando. Um grito de pavor se precipitou da garganta de Ariane ao chamar o
nome da amiga. Ariane correu para o outro lado da rua. De um lado os homens
vinha chegando, do outro, Cláudia permanecia estática, sem entender, e dá rua,
sem que Ariane percebesse, um carro vinha e a atingia em cheio, atirando seu
corpo de encontro ao asfalto morno.
Não demorou nada para a ambulância e
os carros de polícia chegarem. Mas chegaram tarde, Ariane estava morta. O relógio
da igreja, perene e insondável, marcava o horário do óbito: Meia noite e cinco
minutos. Cláudia se debruçava sobre o corpo inerte e ensanguentado chorando a
amiga perdida. Os dois homens desapareceram. De Marcos, ninguém nunca mais
ouviu falar.
Essa foi uma das verdades. Porém,
sempre existe o outro lado da moeda, a outra face da realidade que merece ser
vista. Enquanto a polícia tentava isolar o corpo, na fatia oposta da cidade, a
oeste dali, em uma clínica psiquiátrica, Ariane entrava em coma.
– O que nós vamos fazer doutor? –
perguntava a enfermeira, penalizada.
– Infelizmente não há mais nada que
possamos fazer, Cláudia.
– Mas ela ainda está viva, deve
haver alguma coisa...
– Para nós ela está viva, mas em sua
mente ela acredita que morreu. Não vai demorar muito para que o corpo também se
convença disso. O coma é irreversível.
Cinco minutos mais tarde e os
aparelhos acusavam a parada cardíaca e, embora tudo fosse feito para tentar
voltá-la à vida, Ariane estava morta. Já havia morrido, uma hora antes, no
acidente.
– Hora do óbito: Uma hora e cinco
minutos. – disse o médico.
– Ao menos ela vai descansar. Eu não
aguentava mais vê-la sofrendo assim. Já faz cinco anos desde que chegou aqui.
– É, mas agora acabou. – disse o
médico, retirando as luvas e atirando-as ao lixo.
– Doutor Marcos, acha que ela sabia
que eu a considerava como uma amiga?
– De alguma forma sabia, Cláudia. Do
jeito dela, eu creio.
Ariane tinha sua própria realidade e
vivia nela, até o dia em que decidiu já ser hora de, como nos romances, por o
ponto final. Essa, não era uma história com final feliz como tantas outras que
criara pra si. Nessa, a personagem principal devia morrer.
Na vida, é costume se criar
histórias, muitas têm um final feliz, outras não. Todas elas fazem parte dessas
muitas realidades que, queremos acreditar, são reais.
Sávio Damato
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