ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA



Zilda acordara bem cedo na manhã daquela quinta-feira. Estava um dia nublado, um leve frio. Perfeito para permanecer debaixo das cobertas. Desligou o despertador e olhou para o relógio de pulso colocado sobre o criado, ao lado da cama. Sorriu. Aquela era uma relíquia de família, sua avó repassara-o para sua mãe e agora era de Zilda. Quantas boas lembranças um objeto tão simples pode nos trazer, pensava ela, ainda admirando o relógio. Cinco minutos se passaram. Zilda espreguiçou novamente. Hora de levantar. Lavou o rosto, pegou o relógio e foi para a cozinha tomar café. Como de costume, preparou pão, queijo, presunto e ovo frito, acompanhados de suco de laranja sem açúcar.

– Bom dia, minha filha.
– Bom dia, mãe – cumprimentou satisfeita.

Zilda tinha agora cinqüenta e três anos. Estava quase se aposentando, mas gostava de trabalhar. Levantar todas as manhãs e pegar o ônibus até o prédio do Ministério Público lhe dava uma confortável sensação de utilidade. Fazia a diferença, ela sabia.
Terminado o café foi se trocar. Chegaria mais cedo hoje. Talvez caminhasse um pouco pela praça em frente ao escritório, aproveitando o ar fresco da manhã antes de entrar para o trabalho.
Ainda eram sete e vinte quando a porta se fechou e Zilda ganhou a calçada rumo ao ônibus, distante apenas dois quarteirões de sua casa. Desceu as escadas, caminhou, atravessou a roleta, esperou por um instante até que seu trem chegasse. Entrou. Sentou-se em um dos vários lugares vazios à janela. Ainda se lembrava da gostosa sensação que a visão do relógio lhe causara ao acordar. Sentia-o firme em seu braço e isso, de alguma forma, dava-lhe conforto, segurança.
O ônibus parou, ainda não era a sua estação. Várias pessoas entraram. Um homem veio e se assentou bem ao seu lado. Zilda permaneceu observando a janela. Estava deslumbrada com seus próprios sentimentos. Por reflexo olhou para o braço do relógio. Onde estava o relógio? Sua cabeça girou. Não podia, não havia como desaparecer. Estava ali há um minuto. Zilda levantou os olhos e deu de cara com o homem que se sentara ao seu lado. Ele sorriu satisfeito e virou o rosto para frente. Zilda, ainda sem entender, olhou para o braço do homem. Lá estava... O relógio, no braço do homem, de um desconhecido. Como podia? Como ele fez aquilo?
Furiosa, Zilda tinha de agir rápido ou o perderia para sempre. Em poucos segundos o ônibus alcançaria uma nova estação e o homem desapareceria com seu relógio no pulso, como se fosse dele, como se nada houvesse acontecido. Ela olhou para a bolsa, olhou novamente para o homem. Calmamente, sorriu. Ele sorriu de volta. 


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AUTOR: Sávio Damato

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